The last of us reverbera as marcas da pandemia

Rodrigo Alencar
8 min readApr 17, 2023

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O que o sucesso da série “The last of us” e demais produções centradas na paternidade revelam sobre a não elaboração da experiência da pandemia.

*O artigo está recheado de spoilers*

“It’s the end of the world as we know it”
R.E.M.

Pedro Pascal como “O Mandaloriano”

Há uma crise na experiência de paternidade contemporânea, efeito das lutas feministas e das críticas ao abandono parental: produz-se uma demanda de que a paternidade seja mais afetuosa e participativa. Se alguém me pedisse uma fórmula de sucesso para uma obra audiovisual atual, eu recomendaria sem pestanejar: “um drama construído sobre questões paternas”. A série “The last of us” é só a última de uma série de produções que tocam direta ou indiretamente o assunto. Outra que teve grande recepção sobre o público adulto é “O mandaloriano”. O spin off da saga Star Wars se tornou um sensível contraponto à tragédia da trilogia que lançou os filmes nos anos 70. Em vez de um pai ausente, um imperador galáctico destruidor de mundos, temos um caçador de recompensas ético.

Um membro de uma seita ancestral que adota um bebê alienígena em meio aos seus freelas, rompendo com um contrato de trabalho para descobrir as agruras e realizações de viver uma errante road trip espacial com seu filho super poderoso a tiracolo — este é o mote da versão Disney da franquia que se tornou uma referência das space operas do cinema. A ideia tem bom apelo: um pai solo — coisa rara de se ver –, levando o filho para o trabalho e revendo as escolhas de vida em função do melhor interesse da criança verde. Com um espaço de infinitas possibilidades de “ir comprar cigarro”, o Mandaloriano batalha para que o enjeitado possa crescer em algum lugar seguro da galáxia, this is the way[1].

Apesar da suposta estabilidade trazida pela “República”, o contexto do Mandaloriano se concentra em territórios que podemos chamar de “terra de ninguém”: entre faroestes e assaltos piratas, um pai protege seu filho adotivo em um contexto de guerra de todos contra todos. Mas chega um momento na trama, em que o pai solo começa a lutar por uma comunidade, um grupo refugiado que possa se restabelecer, um lugar no qual uns zelem pelos filhos dos outros, como acontece em um dos episódios. Guardemos isso.

A série “The last of us”, pautada no já tão surrado mote de apocalipse zumbi, teve o privilégio de contar com um bom roteiro já presente para o videogame em 2013. Seu argumento se tornou uma ficção intimamente contemporânea, com lastros profundos no público, na medida em que é lançada 3 anos depois do início de uma pandemia global. A cena apresentada nos primeiros episódios, em que uma mutação fúngica alcança o organismo humano e se espalha em escala global trazendo caos ao mundo todo, já não requer um imaginário distante. O coronavírus — tivemos sorte, aparentemente, de não ser um fungo canibal — , fez com que assimilássemos a situação com as nossas vísceras: “uma pandemia global? Sei bem como é”.

Novamente, contamos com a figura de um pai solo. Um empreiteiro de obras que rala para bancar sua filha adolescente se apresenta logo no início da série como um pai razoavelmente culpado por saber que não pode estar presente na vida da filha como gostaria, pois o tempo de convivência é escasso. E o pai está ali, equilibrando os pratos de modo um tanto estabanado diante de uma autoconfiança quase delirante típica das crianças, mas que, por vezes, se apresenta também nos adolescentes.

O fato de o pai estar culpado desde o início revela uma mistura de saúde e doença psíquica: saúde porque sabe que não é capaz de prover tudo que a filha pode precisar. Doente porque a culpa sinaliza que é apaixonado pela ideia contrária, de que pudesse ser oniponte em sua capacidade de proteger e prover. A fantasia de onipotência é produto do narcisismo que permite que organizemos nossa própria imagem; o narcisismo lançado sobre os filhos decorre do mesmo mecanismo daquele sobre si, só que destravado de uma defesa: ele se manifesta como altruísmo, dedicação e sacrifício. Alguém que fala sobre si o tempo todo é pedante e vaidoso; já pais e mães que falam sobre os filhos em todas as oportunidades que surgem são cidadãos dedicados em seu papel social e apaixonados pela prole.

Com a eclosão do apocalipse zumbi, Joel tenta transportar sua filha, Sarah, por um labirinto de desastres até que encontra, já com a filha ferida nos braços, um militar em serviço, um representante do Estado no qual Joel se reconhece e apela para a identificação: ele teria o papel doméstico que refletiria o Estado em sua dimensão pública de proteger e zelar por aqueles que estão sob seu poder. Joel, contudo, descobre da pior forma que o Estado não é um sujeito vítima de sua fantasia de onipotência: ele pode sacrificar subordinados cruelmente, e, por vezes, mal consegue gerir o caos de uma situação que não fora prevista. Aqui, mais uma vez, nos vemos tocados pela experiência de sobreviventes de uma pandemia.

O Joel de vinte anos após a tragédia que molda sua personalidade já é uma figura mais próxima do Mandaloriano: um fora da lei que aceita um serviço no qual uma criança é o “pacote” a ser entregue. Como ocorre no jogo, Joel perde sua parceira, ou seja, fim da figura materna e, como pai solo, embarca com a “encomenda” que será tida como filha em sua road trip por um território que já não é um país, mas escombros povoados por infectados e milícias que operam segundo a herança das ações coloniais: a lei da força que opera por saques e assaltos violentos. Ao longo da viagem, uma lição se repete à exaustão, num mundo de tamanha fragmentação e violência: buscar o pacto fragiliza e pode levar à morte. Sobrevive com mais facilidade quem entende que se vive uma guerra de todos contra todos.

Joel, por ser um pai emudecido pelo trauma, no momento mais difícil e crucial da trama, responde com a linguagem que o marcou — a violência bruta e cega de quem perdeu a esperança no que poderia ser construído como comum.

É hora de lembrar que a perda de um filho é algo inominável em nossa cultura. Quem perde o marido ou a esposa é viúvo ou viúva; quem perde os pais é órfão. Quem perde um filho tem de lidar com a inominável dor que tende a corroer o próprio narcisismo como um fungo. A série nos apresenta um pai que não se dá mais o trabalho de pedir ajuda, mas resolve tudo com as próprias mãos e armas.

A paternidade em crise não é um tema qualquer nos tempos atuais. As alterações climáticas, as turbulências políticas e um certo caos social provocado por avanços tecnológicos pouco assimilados, principalmente para o cuidado e educação de crianças e jovens, trazem uma previsão pessimista de que os pais da geração atual deixam como legado um futuro estreito. A fantasia de onipotência parental vai ficando cada vez mais cara.

Pedro Pascal como Joel (e sua expressão de pai preocupado)

O fim das restrições da pandemia trouxe grande alívio e um longo percurso de elaboração aos enlutados. Oficialmente, a pandemia não acabou, e entende-se que caminhamos para uma endemia de covid-19. Apesar disso, já a situamos no passado, estratégia fundamental para mirarmos o futuro. Na medida em que podemos abandoná-la e nos permitimos silenciar a respeito, nos percebemos tendo de lidar com suas marcas. A enorme experiência de insegurança vivida coletivamente vem carecendo de elaboração. O pânico de uma eminente situação de caos, onde o Estado poderia não cumprir o seu papel, poderia levar ao que a ficção nos apresenta: uma guerra de todos contra todos, permeada de violência gratuita e irracional.

Chegando nesse ponto, torna-se inevitável abordarmos os recentes eventos que explodem como efeito de certa anomia social: os atos de violências em escolas, articulados em redes sociais que são profundamente mapeadas e mineiradas para geração de lucros e criação de novos negócios, trazem para o cotidiano uma guerra de todos contra todos sem qualquer mediação. Não são efeitos da pandemia pois são anteriores a ela, mas parecem ganhar força com suas marcas e herança política. Seus objetivos de alcançar repercussão e causar pânico costumam ser bem-sucedidos justamente por tocar nesse saber que fere o narcisismo parental: somos limitados em nossa capacidade de proteger nossos filhos. Isso, no entanto, não nos impede de reconhecermos meios para aprimorar essa capacidade em nosso contexto e, nesse ponto, é melhor recorrermos ao método Mandaloriano em vez do método de Joel: seguranças, policiais e armas protegendo esferas individuais só acirrarão a guerra de todos contra todos. É preciso um lugar onde se possa encontrar alguma solidariedade, conforto e segurança, um lugar no qual seja possível educar as crianças.

Trazendo para o nosso contexto, dependemos de um projeto comunitário para o que se tornou um dos territórios mais perigosos que conhecemos: as redes sociais. É imprescindível atacar o cinismo de quem lucra com o caos.

O boom das narrativas sobre paternidade apela para nossa fantasia infantil de sermos protegidos por pais super capazes quando mais estamos desamparados, reflexo de uma crise comunitária, que, na dificuldade de reconhecer a si mesma, produz ensaios de perspectivas para o que se testemunha como uma instabilidade política global diante das novas tecnologias e seus donos irresponsáveis.

Lembremos que o amadurecimento de uma criança se dá quando ela pode prescindir da fantasia de um pai onipotente, de modo a se proteger e se organizar por meio da palavra e de certa dose de sensibilidade no trato com o outro. De pais pistoleiros o apocalipse está cheio.

A tarefa é construir possibilidades fora do inferno da paranoia narcísica, na qual sempre se mantém aflorado o que há de pior em si, pronto para responder a um suposto outro que seria, antes de tudo, ameaçador ou ofensivo. É sobre isso que Freud comenta quando fala das fantasias de fim de mundo na paranoia, quando se perde a capacidade se conectar com os outros, e toda a libido retorna para a própria fantasia — tal qual um algoritmo que seleciona o conteúdo de suas redes sociais, buscando refletir suas fantasias e sua visão de mundo².

[1] Na versão dublada, o lema de Mandalor repetido à exaustão foi traduzido por “como deve ser”, versão que deixa mais clara o ditame do superego paterno.

[2] O texto passou por uma generosa revisão da psicanalista Claudia Simionato, feita alguns meses após a publicação e republicado aqui na data de 04/08/2023.

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Rodrigo Alencar

Psicanalista, autor do livro "A fome da alma", doutor em Psicologia Clínica pelo IP - USP, participante do Instituto Vox de pesquisa em psicanálise.